IMPULSIVIDADE E COMPULSIVIDADE NA ANOREXIA E BULIMIA NERVOSA: UMA REVISÃO SISTEMÁTICA
Maxina Howard,Eva C. Gregertsen
Chandni Hindocha,Lúcia Serpell
PMID: (Título: ID PubMed)32781364
DOI: 10.1016/j.psychres.2020.113354
RESUMO
Este estudo teve como objetivo avaliar sistematicamente pesquisas transversais que compararam o desempenho cognitivo de indivíduos na fase aguda de BN e/ou AN com HCs em medidas de impulsividade e compulsividade. Os resultados da revisão sistemática mostraram suporte à abordagem transdiagnóstica dos transtornos alimentares. Não houve evidências fortes para apoiar a caracterização da AN como alta em compulsividade (e baixa em impulsividade), nem para apoiar a caracterização da BN como alta em impulsividade (e baixa em compulsividade). Parecia haver resultados mistos tanto para impulsividade quanto para compulsividade em AN e BN. Os resultados foram altamente variáveis devido às tarefas heterogêneas utilizadas e à falta de replicação entre os estudos. Não houve consenso entre os estudos incluídos sobre as tarefas e/ou medidas de resultados mais apropriadas que deveriam ser usadas para estudar os construtos de impulsividade e compulsividade.
Palavras-chave: Cancelamento de ação; Inibição de ação; Restrição de ação; Distúrbios alimentares; Controle de interferência; Assunção de riscos; Mudança de cenário.
INTRODUÇÃO
A anorexia nervosa (AN) e a bulimia nervosa (BN) são doenças crônicas e incapacitantes, associadas a complicações médicas, mortalidade e redução da qualidade de vida (Ágh et al., 2016). Klump et al. (2009) destacaram a necessidade de um tratamento eficaz para evitar as graves consequências associadas ao diagnóstico de um transtorno alimentar (TA). No entanto, o desenvolvimento de tratamentos eficazes é dificultado por uma compreensão incompleta destas doenças (Fairburn et al., 2003).
A classificação diagnóstica de uma DE é atualmente baseada em fenótipos observáveis ou autorrelatados. Embora este possa ser um método eficaz de comunicação de informações clínicas (First et al., 2004), não leva em consideração fatores genéticos e de desenvolvimento, que poderiam influenciar a progressão da doença (Treasure et al., 2007). Curiosamente, daqueles que foram diagnosticados com AN, 55% desenvolvem sintomas de compulsão alimentar (Eddy et al., 2008), e quase 30% dos indivíduos com BN relatam uma história de AN (Keel, 1997), demonstrando mudanças entre categorias diagnósticas e flutuação de sintomas ao longo do tempo (Fairburn et al., 2003).
Como tal, a investigação recente afastou-se destas categorias diagnósticas instáveis (Anderluh et al., 2003) e dirigiu-se para a neurocognição (Roberts et al., 2003). O exame das relações cérebro-comportamento pode levar a uma melhor compreensão dos TAs, uma vez que se pensa que os sintomas são sustentados por alterações no funcionamento cognitivo (Tchanturia et al., 2012) e podem, portanto, ser melhor direcionados no tratamento.
Os investigadores têm frequentemente feito comparações entre as características clínicas da AN, tais como a rigidez no comportamento alimentar, e o Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC) (Serpell et al., 2006, 2002; Tyagi et al., 2015). Indivíduos com histórico de AN ao longo da vida pontuam mais alto em medidas de compulsividade do que controles saudáveis (HCs) (Holliday et al., 2006), bem como relatam retrospectivamente a presença de características obsessivo-compulsivas antes do início da AN (Brecelj-Anderluh e outros, 2003). Na verdade, os sintomas do transtorno de ansiedade, que podem estar subjacentes tanto à AN quanto ao TOC, predizem os sintomas e o diagnóstico de DE no final da adolescência (Schaumberg et al., 2019) Treasure et al. (2007) sugere que esses comportamentos obsessivo-compulsivos são sustentados por alterações de traços no funcionamento cognitivo e nos estilos de processamento de informações que podem ser considerados endofenótipos candidatos.
Os endofenótipos refletem características hereditárias duradouras, independentemente do estado do indivíduo. Portanto, a característica estará presente antes do desenvolvimento da doença, após a recuperação, e será mais provável de ser encontrada em familiares não afetados (Gottesman e Gould, 2003). Tesouro et al. (2007) recomendaram o uso de endofenótipos para diagnosticar e orientar recomendações de tratamento no campo dos TAs.
A pesquisa que examina os endofenótipos na AN é mais avançada em comparação com a BN e identificou a inflexibilidade cognitiva como um candidato potencial. Indivíduos com AN costumam ser rígidos em comportamento e estilo de pensamento, perseverativos e inflexíveis, quando comparados a controles saudáveis (Vitousek e Manke, 1994). Especificamente, a investigação identificou dificuldades na mudança de conjuntos – a capacidade de avançar e recuar entre diferentes estímulos, ou conjuntos “mentais” (Holliday et al., 2005). Esse índice de inflexibilidade cognitiva tem sido observado em pacientes recuperados de AN e, até certo ponto, em BN (Roberts et al., 2007, 2010), além de irmãs não afetadas daqueles com AN (Holliday et al., 2005).
Um outro aspecto do funcionamento executivo que foi sugerido como um endofenótipo potencial é a coerência central. A fraca coerência central reflecte uma tendência para o processamento detalhado em detrimento do processamento global (Happe e Frith, 2006). López et al. (2008a) descreve indivíduos com AN e BN como tendo pior desempenho em tarefas que medem a coerência central. Além disso, López et al. (2008b) relataram processamento detalhado superior em pessoas com AN. No entanto, tem sido debatido até que ponto isto representa um endofenótipo distinto não relacionado com o estado da doença (Lopez et al., 2008b; Talbot et al., 2015).
Evidências de diminuição da flexibilidade cognitiva (Roberts et al., 2007) e interrupção da tomada de decisões (Lopez et al., 2008a) levaram à conceituação da AN como de natureza compulsiva (Godier e Park, 2014). A restrição alimentar compulsiva e o exercício são uma característica fundamental da AN (Dalle et al., 2008). No entanto, a definição de compulsividade não incorpora défices de coerência central. Em vez disso, a compulsividade tem sido definida como “ações inadequadas à situação que persistem, não têm nenhuma relação óbvia com o objetivo geral e que muitas vezes resultam em consequências indesejáveis” (Dalley et al., 2011). A desregulação dos sistemas que medeiam a compulsividade resulta em consequências negativas, ou prejuízo na tarefa, e se reflete em erros perseverantes e na incapacidade de trocar de aparelho. As ações compulsivas realizadas por indivíduos com AN são frequentemente repetitivas e estereotipadas. Durante o curso da AN, o repertório comportamental estreita-se e o comportamento compulsivo, como a alimentação ritualística e o exercício, torna-se mais aparente e problemático (Godier e Park, 2014), sugerindo que a fome pode pelo menos exacerbar a compulsividade uma vez estabelecida a DE. Isto também foi conceituado como ‘controle excessivo’ resultante de inibição excessiva e forneceu a base para o desenvolvimento da Terapia Comportamental Dialética Radicalmente Aberta (RO-DBT), para o tratamento da AN (Lynch et al., 2013). O termo excesso de controle usado no RO-DBT descreve não apenas ações comportamentais, mas pode ser usado para descrever características que abrangem comportamento, expressão emocional e conexão social. Portanto, a hipótese do excesso de controle descreve a rigidez comportamental que não é receptiva ao feedback ambiental ou social, limitando assim novas oportunidades de adaptação e atua para reforçar o comportamento perseverativo (Chen et al., 2015).
Por outro lado, a BN tem sido descrita como um distúrbio de mau controle dos impulsos. A perda de controle demonstrada durante a compulsão alimentar e a purgação tem sido relacionada à incapacidade de inibir ações (Boisseau et al., 2009; Claes et al., 2001; Fernandez-Aranda et al., 2009). Evidências comparando BN e HCs apoiam essa visão, mostrando aumento da impulsividade na BN em comparação com indivíduos sem transtorno alimentar (Claes et al., 2005; Mobbs et al., 2008; Newton et al., 1993; Rosval et al., 2006) .
Embora as definições de impulsividade variem, uma definição clássica de impulsividade define-a como “ ações mal concebidas, expressas prematuramente, indevidamente arriscadas ou inadequadas à situação, e que muitas vezes resultam em consequências indesejáveis ” (Daruna e Barnes, 1993). Esta definição sugere que a construção da impulsividade abrange o comportamento praticado antes de o indivíduo ter amostrado suficientemente todas as evidências disponíveis; um déficit de ações inibidoras; tendência a tomar decisões arriscadas; e uma preferência por recompensas menores mais cedo versus recompensas maiores mais tarde, conforme descrito por Evenden (1999). Comportamentos que podem ser categorizados como exemplos de impulsividade de acordo com a definição estabelecida por Daruna e Barnes (1993) também foram descritos clinicamente como um problema de “subcontrole” por Lynch e colegas. Por exemplo, um episódio de compulsão alimentar na BN poderia ser pensado como um exemplo de subcontrole, resultante de uma fraca inibição do comportamento dependente do humor (Hempel et al., 2018).
Espera-se que a investigação se os traços de impulsividade e compulsividade representam endofenótipos distintos que acabarão por auxiliar na identificação de indivíduos em risco, no desenvolvimento do tratamento e no diagnóstico mais preciso. A investigação que examina a natureza rígida e compulsiva da AN já foi traduzida na Terapia de Remediação Cognitiva (CRT), que visa a rigidez comportamental sustentada pelo endofenótipo de fraca flexibilidade cognitiva. Foi demonstrado que a TRC aumenta a eficácia dos tratamentos existentes, aumenta a qualidade de vida e reduz a psicopatologia dos transtornos alimentares (Dahlgren et al., 2014).
As terapias também foram projetadas para atingir a impulsividade em indivíduos com BN, como a DBT (Hill et al., 2011; Safer et al., 2001). Há evidências preliminares de que a TCD pode ser eficaz para a BN (Hill et al., 2011; Safer et al., 2001). Embora o traço de impulsividade ainda não tenha sido estabelecido como um endofenótipo, a compreensão do perfil neurocognitivo de indivíduos com BN pode melhorar a compreensão dos resultados do tratamento e da etiologia (Steiger e Bruce, 2007).
A base de investigação existente tem sido considerada como indicando que AN e BN são diametralmente opostos e situam-se em ambos os extremos de um espectro impulsivo/compulsivo (McCluskey et al., al., 1991). No entanto, a investigação também mostrou que alguns elementos de impulsividade e compulsividade podem ocorrer simultaneamente no mesmo indivíduo. Além disso, estudos de impulsividade e compulsividade em TAs mostraram resultados contraditórios, por exemplo, impulsividade elevada na AN (Favaro et al., 2005). O modelo transdiagnóstico apresentado por Fairburn et al. (2003) sugere que os diferentes diagnósticos de transtorno alimentar compartilham comportamentos semelhantes e fatores de manutenção subjacentes, como a superavaliação da forma e do peso. A abordagem transdiagnóstica propõe que tanto a AN como a BN partilham a mesma psicopatologia básica, que se expressa em comportamentos semelhantes, como a impulsividade e a compulsividade. A frequência com que os indivíduos migram de um diagnóstico de transtorno alimentar para outro, na maioria das vezes de AN para BN, parece consistente com esta visão (Agras et al., 2000). Fairburn et al. (2003) afirma que, à medida que os indivíduos passam de AN para BN, a psicopatologia central relacionada à forma e ao peso permanece a mesma, mas à medida que o peso aumenta, os sintomas de fome, como a rigidez compulsiva, diminuem. A expressão comportamental está então alinhada com a de BN. Portanto, em vez da visão tradicional da BN como um transtorno de impulsividade e da AN como um transtorno de compulsividade, esses construtos podem se sobrepor dentro do mesmo indivíduo (Robbins et al., 2012). Robbins et al. (2012) recomendou que a impulsividade e a compulsividade deveriam ser consideradas transdiagnósticamente, a fim de auxiliar o desenvolvimento de novos tratamentos. Especificamente, recomendaram que a investigação se centrasse em comportamentos de diagnóstico cruzado, em vez de se concentrar em diagnósticos específicos. Isto está alinhado com a recente estratégia de Critérios de Domínio de Pesquisa (RDoC) aprovada e usada pelo Instituto Nacional de Saúde Mental (NIMH). Esta estratégia descreve a necessidade de centrar a investigação em construções, ou comportamentos, comuns em perturbações psiquiátricas, em particular aquelas com bases neurobiológicas (Godier e Park, 2014).
No entanto, até à data, existem poucos estudos que analisam a co-ocorrência de impulsividade e compulsividade entre TAs. Embora a pesquisa tenha examinado a impulsividade na BN, a maioria desses estudos não incluiu indivíduos com AN, nem incluiu medidas de compulsividade. Além disso, não se sabe até que ponto a impulsividade e a compulsividade podem co-ocorrer entre AN e BN. Portanto, um passo necessário antes de concluir que esses construtos representam endofenótipos distintos, associados a cada transtorno alimentar, é sintetizar e revisar as evidências existentes, para proporcionar uma melhor compreensão dos conceitos de impulsividade e compulsividade e seu papel na AN e na BN.
As revisões existentes na área têm sido limitadas, concentrando-se apenas na BN, examinando apenas a impulsividade ou o perfil neurocognitivo geral (Van den Eynde et al., 2011; Waxman, 2009). A meta-análise entre AN e BN tem escopo limitado ou está desatualizada (Wu et al., 2013; Zakzanis et al., 2010). Uma revisão atualizada e mais focada é claramente justificada, à luz das recomendações do RDoC e do recente aumento do interesse na neurocognição e no papel de possíveis endofenótipos nos DEs.
O objetivo geral da revisão é fornecer uma síntese atualizada da pesquisa sobre os traços de impulsividade e compulsividade, em AN e BN, dentro da mesma revisão. Um outro objetivo é examinar se essas características são transdiagnósticas e observadas tanto na BN quanto na AN. Por fim, a revisão visa avaliar até que ponto essas características podem ser consideradas como potenciais endofenótipos. Portanto, a revisão avaliará sistematicamente evidências que comparam o desempenho cognitivo em medidas de impulsividade e compulsividade, entre adultos na fase aguda de BN e/ou AN, com HCs.
Método
Esta revisão segue as diretrizes estabelecidas pela declaração PRISMA (Preferred Reporting Items for Systematic reviews and Meta-Analysis) (Liberati et al., 2009).
Resultados
Trinta e oito estudos comparando indivíduos com AN, BN e HCs em medidas de impulsividade e/ou compulsividade (Tabela 1) preencheram os critérios de inclusão. Veja a Figura 1 para ver o número de estudos incluídos e excluídos em cada etapa da revisão. A Tabela 1 fornece dados sobre as características dos participantes, tarefas utilizadas e medidas de resultados.
As principais observações foram as seguintes: (1) Os tamanhos das amostras tendem a ser pequenos, e apenas cinco dos 40 estudos realizaram cálculos de poder para estimar o tamanho da amostra necessário (
Discussão
O objetivo desta revisão foi identificar e resumir pesquisas transversais comparando o desempenho cognitivo em medidas de impulsividade e/ou compulsividade entre indivíduos com AN, ou BN com HCs. No geral, os resultados da revisão são altamente variáveis, apresentando resultados mistos. As razões para isso são exploradas abaixo.
Declaração de interesse concorrente
Os autores cujos nomes estão listados imediatamente abaixo certificam que NÃO têm afiliações ou envolvimento em qualquer organização ou entidade com qualquer interesse financeiro (como honorários; bolsas educacionais; participação em agências de palestrantes; associação, emprego, consultorias, propriedade de ações ou outras participações societárias; e depoimentos de especialistas ou acordos de licenciamento de patentes) ou interesses não financeiros (como relacionamentos pessoais ou profissionais, afiliações, conhecimentos ou crenças)…
Fonte: https://www.sciencedirect.com